No quarto dia de viagem, após deixar o porto de Lisboa, o navio em que viajo, com destino ao Brasil, chega a Santa Cruz, capital de Tenerife, a maior ilha do arquipélago das Canárias, onde está o vulcão inativo do monte Teide, pico mais elevado da Espanha. Como o tempo é escasso e temos a informação de que é muito bonita a área central, decidimos dispensar as excursões oferecidas e fazer o turismo por nossa conta e risco.
Assim, embarcamos no ônibus circular 920 e contornamos a rambla General Franco, enfeitada com arbustos coloridos e canteiros repletos de flores amarelas, as sacadas dos inúmeros edifícios também com floreiras multicoloridas, toda a cidade extremamente limpa e tranqüila, o centro histórico todo restaurado.
O comércio é excelente, neste porto livre da Espanha. Inacreditáveis os baixos preços das toalhas bordadas à mão e de outras mercadorias do artesanato local. Mas, surpresos com a beleza dos monumentos históricos, nós nos distraímos, caminhando pelas ruas; depois, resolvemos almoçar no gracioso restaurante ao ar livre, deixando as compras para a tarde.
Recuperadas as forças, disponho-me a escolher algum artigo, quando descubro que as lojas fecharam às treze horas e trinta minutos e só voltarão a abrir às dezessete, horário de o navio zarpar _ é a siesta. Esqueci que estava na Espanha. Escapei da tentação, portanto. Como não desejo carregar peso e já precisei abrir o primeiro zíper do saco de viagem, não me perturbo.
No cais, na volta, vemos a réplica da caravela Santa Maria, minúscula em comparação ao transatlântico. Penso na coragem dos descobridores portugueses e espanhóis, enfrentando o oceano imenso, sem imaginar o que encontrariam pela frente. Nessa travessia, cruzamos apenas por outro navio, que passou a 20 km e não foi visto por nós, apenas detectado pelos radares.
À noite, no interior do navio, a programação prevista é o show de uma cantora e animadora inglesa. Ela mais grita que canta a sua primeira canção, para nossa surpresa, pois todos os espetáculos apresentados têm sido de excelente nível. Depois, passa a interagir com a platéia com ditos considerados hilários pelos seus compatriotas, que se sacodem de tanto rir. Não entendemos nada, devido às gírias utilizadas e ao sotaque carregado. Estimulada, ela lança chistes aos brasileiros, sentados ao redor das primeiras mesas, constrangendo-os com as suas piadas. Como pretende se fazer entender pelos atingidos, tenta um inglês mais claro, de forma que podemos compreender como os está ridicularizando. Noto que a senhora escolhida como alvo já está furiosa, prestes a tomar alguma medida drástica. Aborrecidos com o desenrolar da desagradável situação, embora não fôssemos o foco, resolvemos levantar e sair.
Na meia-luz do teatro, ouço uma forte voz masculina, apoiando a nossa atitude: “E viva o Brasil”! Ao chegar à porta e à claridade, percebo que dezenas de brasileiros e portugueses se levantaram e nos acompanham, com comentários indignados sobre a falta de profissionalismo da cantora inglesa. Decerto só precisavam de uma mãozinha para também demonstrar o seu descontentamento.
Bem, não era nossa intenção liderar um motim a bordo, mas valeu. Na próxima apresentação, ela será relegada ao salão menor, pois aqui se apresentará, no mesmo horário, um cômico brasileiro. Excelente, versátil, engraçado, ele só encontrará certa dificuldade em mudar o sotaque das piadas e os nomes dos envolvidos, por se tratar de uma platéia com maioria de portugueses.
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