13 de set. de 2006

Em alto-mar

Entre Cabo Verde e Recife, na costa brasileira, serão quatro dias de navegação contínua. Como há muitas programações, o tempo passa rápido demais. Não para todos, com certeza.

Em outro dia, enquanto eu me atrapalhava com a inserção do cartão para abrir a porta do quarto, ouvi uma conversa curiosa, ao meu lado, no corredor. Eram dois casais, vizinhos de quartos. A primeira senhora, desejando ser delicada, perguntou:

_ E a senhora, está gostando do cruzeiro?

_ Detestando _ respondeu a outra, de modo seco.

_ Como? Por quê? _ a primeira pareceu muito espantada.

_ Não gostei do navio, é péssimo.

Eu quase podia ver a boca aberta da primeira, formando um OH redondinho, já arrependida de ter feito a pergunta. Os maridos, mudos.

_ Não tem hidromassagem no banheiro, gosto quando tem hidromassagem.

_ Ah _ o espanto era grande, pelo visto, mas ela ainda tentou: Mas a senhora não gosta de fazer outras coisas?

_ Não tem nada para fazer, as diversões são sem-graça, não gosto de teatro ou boate.

_ Gosta de ler? – perguntou ainda a estupefata vizinha. A essas alturas, penso que me atrapalhei mesmo com o cartão, pois eu tentava de um lado, virava, tentava do outro e o cartão, que costumo acertar na segunda tentativa, não abria a porta de maneira alguma.

_ Detesto ler.

_ Não gosta de bordar? Eu bordo muito.

_ Tenho visto _ interrompe a incontentável _ mas também detesto.

A primeira me pareceu que enfim se irritou, pois um pouco afirmou, um pouco perguntou, meio sem haver razão:
_ Provavelmente a senhora também detesta cozinhar, não é? Deve ser dessas que só come fora, não gosta de cheiro de comida na cozinha.

O assunto estava interessantíssimo, mas enfim a porta abriu e eu entrei, peguei o meu chapéu para o sol e saí a tempo de ouvir o marido da primeira, que até então estivera mudo, dizer:

_ Meu amigo, você ensinou muito mal a sua mulher. _ O atingido deve ter feito alguma cara, mas nada falou. Quando passei por ele, _ apertando-me contra a parede, pois os quatro obstruíam a passagem _ não resisti e lhe lancei um olhar, para ver a sua expressão. Ele abriu um sorriso para mim, como a dizer que não estava nada preocupado com o aborrecimento da mulher. O sorriso foi tão espontâneo, que retribuí. Aí ouvi a voz indignada da esposa: _ E ela ainda ri! Saí de fininho, antes que sobrasse para mim.

Na passagem da linha do Equador, acontece a festa em honra a Netuno, cerimônia em que é solicitada ao deus dos oceanos a licença para adentrarmos seus domínios. O corpulento e brincalhão médico de bordo _ túnica branca, coroa de flores na cabeça _ recebe as homenagens e oferendas, assiste às danças efetuadas e, matreiro, pede a repetição, com uma ressalva: desta vez, dispensa os três rapazes; ordena que dancem apenas as quatro lindas jovens. E elas novamente dançam, risonhas, os corpos perfeitos em meneios graciosos dentro dos biquínis minúsculos, enquanto agitam as coloridas saídas de banho, no ritmo animado da música. Exigente, ele se declara insatisfeito, propiciando a apresentação de diversos grupos.

Na platéia, sentados sobre colchonetes de lona branca, estrategicamente colocados, rimos sem parar das fantasias improvisadas e do bom-humor, principalmente dos ingleses: sisudos senhores de cabelos brancos, enrolados em papel crepom sobre os calções, peles vermelhas pelo excesso de sol; gordas senhoras a se sacudirem, erguendo as mãos e dobrando os joelhos, na encenação das danças brasileiras aprendidas nas aulas à beira da piscina.

Enfim, Netuno se dá por satisfeito e libera a passagem do navio, entre entusiásticos aplausos. Depois, em termos grandiosos _ coisa para emoldurar e colocar na parede _ cada um de nós receberá o seu diploma da passagem do Equador. Imagino se o nenê deitado em seu carrinho também o receberá.

Com o correr dos dias, começam a ser conhecidos alguns passageiros, muitos trocam experiências, convidam para partilhar a mesma mesa, durante as refeições. Alguns personagens chamam a atenção: o inglês de cabelos loiros quase raiando o branco, fazendo a corte à moça de meia idade, de aparência pudica, vestida como antiga freira, cabelos pretos escorridos num penteado sem-graça, óculos redondos, postura muito tesa e contida; o grupo das seis mulheres de idades variadas, sempre agrupadas à volta do piano, pedindo à cantora determinadas músicas; o antipático e empertigado cavalheiro, superior à plebe, com a qual não se comunica, que aos poucos se percebe ter a companhia da esposa, da filha e de um casal de amigos; casais de diferentes nacionalidades, simplesmente usufruindo a companhia um do outro; muitos homens, empurrando as cadeiras de rodas com suas mulheres, na maior naturalidade, em alegre conversação _ companheiros “na saúde e na doença”, como um dia prometeram, talvez sem aquilatar o peso de tal promessa; o trio companheiro do homem só com tocos de pernas, sua cadeira sempre empurrada pela mulher; a inglesa adepta do topless, cada vez mais chamativa _ os cabelos espigados, num loiro exagerado, presos ora como “Maria Chiquinha”, ora num “rabo de cavalo”, enfeitados com uma grande flor de plástico _ sempre acompanhada pelo marido, ambas vermelhos como camarões.

No passar do tempo, o observador, mesmo que pouco atento, começará a perceber sutis mudanças. A moça pudica, que ontem dançava cerimoniosamente, hoje já se deixa enlaçar; depois, ela e seu enamorado loiro serão vistos por todos os recantos do navio, em animada conversação ou saindo da loja de bordo, carregados de sacolas. Mais tarde, os rostos transfigurados de alegria, tomarão juntos o café da manhã, vencidas as resistências, segundo parece. O futuro dirá se este foi o início de um caso de amor ou um romance de férias. Em qualquer dos casos, esta viagem será inesquecível, tanto para eles, como para nós, que cada vez apreciamos mais os cruzeiros marítimos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Realmente é interessante observar os diversos tipos passageiros,deve ser uma fonte de inspiração para compor os personagens de um romance.
Adorei,esta parta da viagem.
beijos Ivone

Anônimo disse...

Marta!
É muito importante, quando pretendemos viajar, saber aonde e como vamos. Pessoas que apenas "vão" porque outros foram, dá nisso muitas vezes - completamente despreparados, entáo : péssima viagem!
Eu, por exemplo,teria que levar PLASIL, caso escolhesse viajar de navio, e o passeio se tornaria maravilhoso!