Entre Tenerife, nas Ilhas Canárias, e o próximo porto, teremos dois dias de navegação. No interior do transatlântico, o movimento é intenso, sempre. Mas, como é enorme, com inúmeros ambientes, é fácil achar um lugar calmo e solitário, se desejado. Gosto de subir ao deck 12, onde o salão preferido para a leitura e as conversas em voz baixa abrange toda a parte superior do navio _ envidraçada, de forma a possibilitar a visão do oceano por todos os lados. Sento em uma das poltonas e fico lendo, em absoluto silêncio, “Viver para contar”, de Gabriel Garcia Márquez. Desejo que, neste momento, com o mesmo prazer, alguém leia o meu livro, “Tempo de soltar as amarras”, pois trouxe dois exemplares para doar à biblioteca.
Como fiz a doação no segundo dia a bordo e nunca mais consegui encontrá-lo nas prateleiras, a brincadeira entre nós é de que houve cem por cento de aceitação, com lista de espera. Desnecessário completar o comentário com a explicação de, por se tratar de um navio inglês, serem os únicos livros em português. O importante é que o navio passará o verão navegando na costa brasileira e, mesmo que por absoluta falta de opção, serei lida.
Há pessoas de todo tipo e feitio, neste navio, uma multidão que caminha, nada, joga, compra e come. E como comem! Impressiona-me também a quantidade de água doce necessária a esta população flutuante. Alías, o capitão também está preocupado com o consumo de água, descubro ao ler o boletim entregue à noite: cerca de 600 toneladas, diariamente.
No quinto dia a bordo, após as paradas na Ilha da Madeira e nas Canárias, mesmo sem pretender, comecei a estabelecer uma rotina. Incapaz de fugir ao comportamento de dona de casa, retirei as folhas murchas do arranjo floral recebido na chegada, recuperando o seu belo aspecto. Não é recomendável acumular roupa suja, melhor lavar todo dia, o que tratei de fazer. Também estabeleci um horário para a caminhada, embora fosse mais divertido ficar no deck superior, observando as cômicas instruções nas aulas de danças para os ingleses e portugueses.
Para a circulação, utilizo apenas as escadas, nunca o elevador, no intuito de atenuar um pouco a culpa pelo festival gastronômico e facilitar o encontro com a balança, após esses dezessete dias sem grande controle alimentar.
Nas manhãs, tomamos banhos de sol no convés, sentados em confortáveis espreguiçadeiras, conversando com os companheiros de viagem, aproveitando ao máximo este “dolce far niente”. Aí surgem contratempos não esperados, num cruzeiro marítimo de turismo que pressupõe viajantes com certo nível de educação.
No boletim colocado à noite sob as portas dos camarotes, o comandante começou a solicitar que os passageiros não reservassem cadeiras à beira da piscina e nos conveses, com suas toalhas, por mais de quinze minutos. Dia após dia, o educado apelo foi ignorado, criando situações constrangedoras. Num determinado momento, o comandante se colocou no deck superior à área da piscina, observando o festival de cadeiras vazias, ocupadas apenas por livros e pelas toalhas brancas, enquanto pessoas descontentes caminhavam à volta, procurando lugar para sentar e sem desejar se atritar com os outros passageiros. Passados os quinze minutos regulamentares, sem qualquer comentário, desceu o comandante com vários marinheiros e estes recolheram todas as toalhas e os livros, juntando-os numa pilha. Como as toalhas, inclusive, deverão ser deixadas nos camarotes, ao final do cruzeiro, sob pena de multa, seus donos devem ter passado o vexame de recuperá-las. Com essa posição firme, foram evitadas futuras desavenças e todos ficaram felizes, como convém a esta história.
Feliz também parece a senhora portuguesa, sentada próxima ao piano, no cair da tarde. Outro dia, quando desfrutarmos a sua companhia durante o café da manhã, ela contará que ama o Rio de Janeiro, pois suas belas praias lembram as de sua terra natal, Angola, de onde foi expulsa, por ocasião da independência, levando de sua fazenda de café apenas a documentação comprobatória da posse. Ainda assim, alegre, ela dirá ter oitenta e oito anos e muita animação _ o que é notório em seu vivo olhar.
Após dois dias de navegação contínua, o navio aporta em Mindelo, no Cabo verde: um lugar pobre, deprimente, com uma população desocupada e miserável, pela absoluta falta de tudo, inclusive emprego. No precário e sacolejante ônibus de turismo, sem ar condicionado, apesar do calor insuportável, os dois jovens guias-turísticos fazem um esforço sobre-humano para mostrar algo interessante. Mais ou menos como tentar tirar leite de pedras, mas é tal o seu empenho, que ninguém reclama. Como, inclusive, o ônibus não possui microfones, eles se posicionam um no começo e outro no meio do corredor, falando ao mesmo tempo. Contam que a população é um misto de influências portuguesas, africanas, mediterrâneas e latinas, resultando na maioria de “creole” ou mulatos; cerca de três quintos da população tem menos de vinte anos; a maioria dos habitantes da ilha emigra, principalmente para Portugal.
Como chove apenas cerca de uma hora e meia por ano, numa enxurrada, Mindelo é de uma secura impressionante, levando-nos a questionar o motivo do nome Cabo Verde, dado ao arquipélago. Enquanto os gentis guias-turísticos fazem a sua otimista explanação, os passageiros lembram com pesar os cinqüenta dólares pagos pela excursão. Na volta ao navio, vários preencherão formulários de reclamação. Outros pensarão que terá sido um dinheiro bem gasto, se alguma parte servir para diminuir a penúria dos habitantes da ilha.
Em frente à janela envidraçada, procuro a precisão em minhas anotações, quando o navio anuncia a partida e o sol também se despede no horizonte, num festival de cores.
2 comentários:
Gosto dos teus enfoques sobre essas viagens. A primeira coisa que fiz foi tentar localizar no mapa e, para surpresa minha, encontrei belas fotos e mapas, que vou enviar por e-mail. Continuo achando que, se anexares algumas fotos desses locais, dará uma ótima idéia para quem não conhece. Gostei - abs - Simeão
Muito interessante a descrição da viagem Marta! Escreves tão detalhadamente que consigo imaginar as cenas da viagem!É simplesmente fantástico!
Grande abraço!
Camila G. dos Santos
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