Na condição de avó iniciante, fui apresentada à crônica “A arte de ser avó”, de Rachel de Queiroz.
“Netos são como heranças; você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu” _ comecei a ler, concordando em gênero e número. “Mais filho que o filho mesmo”, Rachel assegura, já me fazendo franzir a testa, levemente intrigada. “Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é “devolvido”. Epa! Ali estaquei, surpresa.
Filhos são feitos para crescer e se lançarem ao mundo, não para nos serem devolvidos, envoltos em cueiros.
Mas, implacável em seu desmesurado amor de avó, a escritora extrapola, falando no “entrave maior, a grande rival: a mãe”. Compara mãe e avó aos papéis de esposa e amante, nos triângulos amorosos: a mãe colocada na posição de educadora e megera, a avó como a confidente, a que tudo permite e concede. Imagino uma geração de mulheres fortalecidas em sua posição de avós pelo consentimento recebido da grande escritora. Mães e filhas, sogras e noras trocando farpas e lançando faíscas, na disputa pelo espaço maior no coração de algum guri esperto e observador, pronto a tirar proveito da situação.
Rachel de Queiroz me perdoe. Sendo a mulher inteligente que era, não acredito que tenha sido o tipo de mãe, avó ou sogra por ela apregoado na crônica que, como página literária, está muito boa. Como ensinamento para bem-viver, contudo, deixa muito a desejar.
A vida é feita de etapas e a grande arte consiste em viver cada uma plenamente, depois seguir em frente. Há o tempo de ser mãe, em que, além de educadora, é válido ser divertida, inventar brincadeiras, meter-se mato a dentro em passeios desbravadores, companheira para empreitadas inusitadas. Há o tempo de pegar no colo e contar histórias, tempo de ouvir outras tantas. Tempo de dizer “Vai!” e de falar “Espera!”; tempo de brigar e defender princípios que valham a pena, de fechar os olhos e ignorar o que não merece o desgaste de uma briga.
Depois, os filhos crescem e ganham o mundo. Saem em busca de conquistas, que enchem os pais de orgulho, como se suas fossem. Ferem-se e são feridos, como já muito aconteceu aos pais, mas dor de filho dói mais que qualquer outra já sentida. Voltam, quando é certo que lá ficou o refúgio garantido. Recuperam-se e retornam à luta, fortalecidos pelas certezas que levam entranhadas. Filhos têm o seu lugar cativo.
Nesse ir e vir, as mães continuam suas vidas, desenvolvem interesses; se viveram todas as etapas da maternidade, estão prontas para aceitar outros papéis. Entre esses, um dia, surge a experiência de ser avó. É um novo caminho, divisão de tarefas e incumbências, multiplicação de carinhos. Não é o resgate da mocidade, a compensação por outros amores frustrados, sequer a oportunidade de compensar tudo o que a vida levou. Nem a hora de abandonar todo o resto e se entregar inteira a essa única tarefa e interesse, como se de repente tudo o mais se tornasse secundário.
É a aprendizagem de recomeçar do zero, refazer os passos, com maior sabedoria e humildade, aberta a novas fórmulas e modernismos. A certeza de que, nos bastidores, sem alarde ou estrelismo, há outro papel a desempenhar.
6 comentários:
Marta!
Fiquei muito surpresa com o pensamento de tão ilustre escritora, à respeito deste tema.
Não gosto de comparações, para começar, de parentescos, de cidades, países, de nada em absoluto, porque cada um tem seus encantos particulares - nada se sobressai ou anula.
Dando-me licença, permaneço com teu pensamento!
Beijos
Marta,
há algum tempo recebi por email o texto da Rachel de Queiroz, e pensei comigo: que lástima, ela nunca foi avó! Cumprimentos pela crônica.
Clara Macedo.
Olá Marta!
Aqui quem escreve é a Camila sobrinha da Isa e do Marcos!
Queria dizer que adoro seus textos e que eles me fazem refletir muito!!Este último está maravilhoso!
Grande abraço
Camila G. dos Santos
Gostei muito de sua reflexão... Realmente, para cada tempo um papel definido... Ser mãe é maravilhoso... ser avó também...sentimentos e papéis que não se misturam... bjo.
Os comentadores, infelizmente, não entenderam a crônica de Rachel de Queirós. Ela não subestima em momento nenhum o papel da mãe. Não compara avó em detrimento da mãe!Ela expressa a transformação de ser avó que sente falta dos filhos, quando crianças. E como avó tem todo o direito de amar aquela criancinha como se fosse seu filho, são amores novos a que os avós têm direito.
Eu entendi exatamente assim, na maior grandeza e doçura das palavras e de ser avó que sou.. Ameei❤
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