Espichei o corpo na cama e a sensação de bem-estar foi indescritível. Fiquei muda, quieta, pernas espichadas, braços largados ao longo do corpo, saboreando a momentânea ausência de dor ou incômodo. Prolonguei o quanto pôde a sensação, antes de traduzi-la: que delícia não precisar mais de sonda, dreno ou soro. Poder mexer o corpo, livre de acessórios, ainda que com extremo cuidado.
Acho que esbocei um sorriso meio sem ânimo, mas só por faltarem forças para gritar de alegria e pular na cama, como menina presenteada com a primeira Barbie. Na verdade, ainda que enfraquecida, estava feliz. Só pode entender a felicidade, em estado tão precário, quem já passou por situação semelhante. Quem nunca passou tem o direito de achar graça ou fazer pouco.
As experiências assimiladas, boas ou más, sempre são benéficas. É dar um passo, transpor um portal e conhecer outras realidades. Ser enriquecido com a percepção do que outros vivenciam, muitas vezes em pior situação financeira, sem os mínimos recursos de atendimento hospitalar e cuidados familiares. Descobrir que há gente acostumada à dor constante, para quem não resta sequer a esperança de que amanhã tudo melhore. Esperança que, em certos momentos, é só o que nos segura. Como viver sem ela? E há quem viva, porque não há outro jeito.
Quando se vence alguma situação com galhardia, sempre há o perigo de alguém se julgar mesmo um vencedor, diferenciado dos outros mortais, que carregam suas mazelas, a duras penas. “Se venci essa, posso vencer todas” _ acreditam alguns, mal superam uma doença, escapam de um acidente na estrada ou conseguem resolver um percalço financeiro.
Por isso, não basta passar pela experiência. Por amarga e sofrida, ela só será válida se o sujeito se obrigar a pensar sobre ela, colocando-a dentro de uma realidade maior, o mundo em que todos vivem. Não vale se considerar um ser aparte, injustamente castigado pelo destino cruel _ posicionamento capaz de torná-lo ainda mais distanciado do mundo real.
Em meio à euforia da vitória, é bom quando o diabinho interior consegue acender chispas de dúvida: e se faltasse isso e aquilo? E se te tornasses dependente dos cuidados mais simples? E se não tivessem paciência contigo e te atendessem mal? Se demorassem a vir, quando precisasses urinar ou desejasses te alimentar? Se o freio do carro não correspondesse? Se os credores não te dessem descanso? Que tipo de pessoa te tornarias, nessas circunstâncias?
Situações absurdas e ridículas acontecem todo o dia, e tirar proveito delas pode representar a diferença entre se achar o tal ou se compreender um ser comum, sujeito a contratempos. Já vi gente elegante apurar o passo, à procura do primeiro banheiro, acometida por uma dor de barriga de causar calafrios; já ouvi pessoas mandonas moderarem o tom de voz para pedir um copo d’água, pela total dependência; já assisti ao desespero de tudo dar errado, apesar de todos os esforços. Nesses casos e em tantos outros, sobra a lição da humildade: pode acontecer comigo.
Portanto, sondas, drenos e soros restauradores podem não ser tão ruins, se cumprirem a função de nos devolverem ao solo firme, onde imprevistos sempre podem acontecer. De inhapa, que nos dêem forças para resistir a todos os trancos, sem perder o ânimo e a alegria de viver.
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