14 de jun. de 2004

Casa paterna

Vesti uma couraça de determinação e praticidade, na cabeça coloquei um elmo ajustado; julguei estar preparada, à prova de emoções. Num andar cauteloso, refiz meus passos, obrigada, por razões diversas, a retornar à casa da minha infância.

No alpendre com ladrilhos de mármore, alternados em preto e branco, parei por um segundo. Tempo suficiente para notar a menina, cabelos pretos escorridos e franja reta sobre a testa, comprimida entre os dois pilares das colunas da entrada; enlaça-os com os braços abertos, meio escondida pela folhagem, na espera dos pais que tardavam. Pretende ser a primeira a fazer sua queixa, contar como a incomodaram os irmãos, um até lhe puxou os cabelos. Coitada, não sabe que enfrentará a fúria materna: crianças não ficam à noite, sozinhas, na rua!

A porta abre e é gentil o sorriso da inquilina, que aguarda a minha visita. Precisamos conversar sobre telhas deslocadas, goteiras, escassez de água, canos entupidos, problemas comuns às casas antigas. Enquanto ela fala, meus irmãos se engalfinham numa luta encarniçada sobre o parquê da sala de jantar, aproveitando a ausência de papai, há dez dias na estância. Mamãe parece acostumada com a situação, quando diz ao caçula que busque o chinelo do ausente. Quando ele chega, marrom, de couro envelhecido, ela se ergue, reclamando que nessa casa não se pode almoçar sossegada e, num vapt, vupt, sapeca os dois traseiros. Eles pulam e gritam, escandalosos, e todos ficamos quietos, esperando que não sobre para nós.

A senhora me conduz à sala de estar e sobre a lareira eu leio, em letras de bronze, “Dios bendiga el pan de nuestro hogar”. Embora fechada por medida de segurança, nela me parece crepitar um fogo forte; é frio lá fora, mas aqui está muito acolhedor.

As imagens vívidas chegam aos borbotões, invadindo-me em torrentes, sobrepondo-se umas às outras, enquanto a voz longínqua explica as reformas efetuadas no prédio. Minha irmã mais velha estica as balas de coco, queimando as mãos na massa quente, depois nós as enrolamos em papel encerado, cortado por mim em quadradinhos, e vou entregá-las nas casas das amigas de mamãe. Nós as vendemos em sociedade e a entrega, a parte mais fácil, compete a mim.

Por outro lado, a irmã caçula, após me ter azucrinado toda a semana, começa a adulação das sextas-feiras, na esperança de um convite para o cinema no domingo; convencida pelos argumentos maternos, lá vou eu, carregando o pequeno trambolho, decerto obedecendo à lei das compensações.

Na saleta, com a grande janela com vista para a azaléia florida, o irmão mais velho sacode o velho rádio, exasperado com as descargas. Na copa, sobre a mesa coberta com oleado xadrez azul e branco, cada um bate a sua gemada na xícara, aproveitando a fartura de ovos, pois papai chegou, trazendo-os enrolados um a um em papel jornal, dentro de uma cesta de vime. Veio de trem, naturalmente; as estradas tortuosas não permitem outro meio de locomoção. Mas trouxe, além dos ovos, pitangas tenras e vermelhas, colhidas por ele mesmo em suas cavalgadas.

Caminho até o pátio onde sobressaem os dois enormes abacateiros. A casa antiga é, agora, uma escolinha; outras crianças brincam aqui e decerto são felizes, embora sujem as roupas na terra preta, enriquecida por tantos detritos colocados por papai nas covas que ele mesmo cavou. Parece-me vê-lo subir no velho abacateiro, carregado dos frutos verdes, para melhor colhê-los. Aproveita um descuido dos filhos adultos, insensíveis à graça que pode achar o velho em se encarapitar na árvore, correndo o risco de quebrar uma perna ou coisa pior. Lá no alto, papai acena e logo desce, admoestado pelo filho aflito:
_ É coisa que se faça, nessa idade? Setenta anos e fazendo arte? _ o sorriso dele, embora envergonhado, trai certo orgulho. “O que pensam esses moleques?” dizem seus olhos verdes, já esmaecidos, quando encontram os meus, sorridentes. Talvez ele goste de apreciar, lá de cima, a algazarra da molecada; talvez lembre a gurizada que brincava de mocinho e bandido, pega-ladrão, com gritos estridentes que o irritavam.

Volto ao interior e, na mesma salinha, conversando baixinho ou em silêncio, amigos diversos se alternam. Correu a notícia de que mamãe em breve partiria. Numa procissão despretensiosa, para mim solene, antigos empregados aparecem. Discretos, calados, reassumem por um dia o serviço: a velha cozinheira faz o prato predileto, o peão da estância varre o pátio, na homenagem mais bonita que eu já presenciei.

Devagar, volto ao presente, quando a voz adulta se cala e ouço várias, infantis, cantando em uníssono uma canção cuja letra não reconheço. Poderia ser “Atirei um pau no gato”, ainda penso, um pé na realidade e outro lá, no cantinho escondido onde armazeno lembranças. As crianças batem palmas e riem, sem perceber que participam de um ritual de despedida. Mas elas saberão entender as histórias que essas velhas paredes contam.

E enquanto eu me afasto, acertados todos os detalhes com a nova inquilina, sinto que a armadura se rompe, abre-se o elmo e estou livre para recordar e para viver. É uma tarde ensolarada de verão e talvez eu pegue o carro e vá até a Praia do Laranjal, para acalmar no balanço dos coqueiros as batidas impertinentes do meu coração.

Crônica publicada na III Seletiva de Poesias, Contos e Crônicas de Barra Bonita, SP.

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