16 de ago. de 2004

O portal

Atrás de cada vago e distraído olhar, há um mundo indevassável, um portal que não nos é permitido transpor sem permissão. Ele ou ela fica lá, calado, absorto, excluindo-nos dos seus pensamentos, e nos sentimos desprestigiados, com vontade de aumentar o volume da televisão, sair da sala pisando forte, ou lembrar algum defeito da sogra, só pra provocar uma reação. Se, condescendente, ele ou ela nos convida a entrar, é preciso tomar muito cuidado para não abusar da gentileza. Qualquer passo em falso pode representar a expulsão e a negativa para novo convite.

Aflige-nos o silêncio dos nossos amados, como muralha a desdenhar o carinho que desejamos ofertar. Mas as pessoas necessitam períodos de recolhimento, em que não se afastam de nós, mas se encontram consigo. Neste instante em que nos alheamos da realidade, caminhamos por outras estradas, procurando as nossas referências, fazendo constatações. O exterior apresenta conceitos prontos e cada um precisa fazer a sua leitura deles. Como alguns viajam a diferentes galáxias, na vida real ou na tela da TV, outros passeiam pelo seu mundo interior.

Um homem me disse que vai pro fundo do jardim e chora, quando fica insuportável a saudade dos filhos distantes. Não deseja perturbar a esposa com sua dor, nem quer especulações sobre a mesma e as eternas frases sobre como os filhos estão bem, que isso é o que importa. Precisa vivenciar a sua dor, apenas. Chorar todas as lágrimas. Depois, recuperado, entra em casa, quem sabe nas mãos alguma flor recém colhida, para melhor disfarçar. Lembrei meu pai, que também se retirava para o fundo do quintal e lá ficava por horas, podando as flores, plantando árvores. Cultivando o seu mundo, agora sei.

Há pessoas que varam a noite no escritório, assombradas pelos seus fantasmas, preferindo a fria conclusão dos números às equações de suas vidas mal resolvidas.

Mulheres há que, angustiadas, se vão às compras e detonam o cartão de crédito, essa uma rota de fuga das mais perigosas. Outra chora todas as suas lágrimas embaixo do chuveiro, abafados os soluços pelo ruído da água corrente, encarregada de levar consigo a dor das perdas, amarguras e frustrações. Ainda outra se põe a escrever furiosamente, transferindo para seus personagens todas as dúvidas e anseios.

Criamos mecanismos de defesa, sublimamos alguns sentimentos, fugimos ao enfrentamento de outros, fazemos o possível e o suportável para viver o cotidiano nem sempre compreensível. Temos sorte, quando conseguimos dar boas risadas das nossas próprias trapalhadas.

Há palavras nunca pronunciadas, em todas as relações humanas, queixas não formuladas, pedidos na ponta da língua, sonhos disfarçados em frases condenatórias. Haveria tanto a aprender e a ensinar, se conseguíssemos transpor esse portal e penetrar no mais íntimo do outro. Que também tudo poderia compreender, se conseguíssemos escancarar a nossa porta e o deixássemos entrar. Mas uma linha invisível nos mantém afastados, cada um dono e preservador da sua própria solidão.

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