Como grande parte das mulheres da minha geração, fui treinada, desde a tenra infância, para ser “boazinha” e “concordina”.
O treinamento, indolor e mesmo prazeroso, constou principalmente de elogios a horas certas e sorrisos de assentimento; tão eficiente, quase me fez acreditar ser da minha natureza a extrema docilidade.
Fruto da época das “rainhas do lar”, não culpo a ninguém por esse treinamento, complô efetuado, talvez sem comum acordo, pelas mães, professoras, religião e toda a comunidade. Por ser mais fácil para todos, compreendo agora. Pessoas treinadas para agradar são fáceis de conduzir.
Depois, quando me considerava uma feliz dona de casa, lendo os artigos das revistas femininas da época, descobri que era injustificada a minha felicidade. Disseram-me que eu, como toda a minha geração, era frustrada, infeliz, pouco valorizada pelo marido, os filhos e toda a sociedade. Por essa última, eu até poderia concordar, pois costuma seguir modismos; porém, no ambiente familiar, pelo menos no meu caso, a observação não era verdadeira. No entanto, foi bom pensar no assunto.
A transformação começou, hoje me parece, lá pelos meus trinta e cinco anos. Precisei de outros tantos para reverter o quadro e descobrir a minha verdadeira personalidade que, afinal, não era amarga, nem frustrada ou revoltada: tinha idéias próprias, necessitava posições firmes. Dificilmente pularia pra cima do muro, à primeira dificuldade.
Comecei, então, o trabalho de procurar a verdadeira mulher, sob a fachada que me haviam ensinado. Precisava descobrir quem eu era, o que desejava ser e o que me faria feliz, sem cobranças futuras aos outros. Pois isso foi das primeiras coisas que entendi: sou a única responsável pelas minhas atitudes e omissões. Não acredito em delegar as falas, esperar o pai chegar para fazer queixa do filho, pedir a outrem que interceda em meu favor.
Foi um trabalho árduo, esse, de mudar de postura sem ir ao extremo oposto, numa época em que se tornara moda virar a mesa e exigir direitos. A mulher que costumava calar, com receio de expor o ponto de vista, compreendeu enfim que era corajosa: só não afrontava para não magoar os outros ou colocá-los em ridículo.
Lembro esse tempo de descobertas e conquistas, quando ouço vozes indignadas, clamando por mais direitos femininos. Argumentam que as mulheres profissionais não ocupam posições de comando, nem percebem salários iguais aos dos homens, entre outras desigualdades. Embora essa afirmação seja, em parte, verdadeira, talvez exista um erro de interpretação e os culpados estejam sendo procurados no lugar errado.
Desde o treinamento a que a minha geração foi submetida, muita coisa mudou. As mulheres se revoltaram e viraram a mesa. Como escravas recém libertas, quebraram as correntes. Invadiram as universidades, dominaram os escritórios e os campos de pesquisa, mostraram competência em todos os setores. Algumas perderam o interesse pela casa, deixaram a cozinha para os homens, passaram a considerar qualquer gentileza como gesto de submissão. Buscar um copo d’água? Nem pensar. Alcançar uma caneta, o notebook, um par de chinelos? Ora, por que não pega você mesmo?
Na trajetória feminina em busca de realização pessoal, as mulheres deixaram esquecidas, no leito da estrada, algumas qualidades que as diferenciavam e as tornavam especiais. Excelentes mediadoras, hábeis em relacionamentos, preferiram firmar posições antagônicas. Também a flexibilidade, a facilidade de adaptação, a capacidade de apaziguar, características femininas, por muito próximas da subserviência, foram consideradas inadequadas.
Vencidas inúmeras resistências, alcançados gloriosos patamares, ao fim de certo tempo, as mulheres perceberam perdas em sua trajetória. Quando os filhos chegavam à adolescência, por exemplo, muitas descobriam haver ignorado os gostosos anos da infância. O mundo masculino, afinal, não era tão sofisticado como imaginavam; incluía stress, infarto e não abolia a depressão. Era a velha frustração, com nova roupagem.
Hoje, mais seguras de si, as mulheres podem fazer o caminho de volta, recuperando os valores adormecidos. Ao utilizá-los, em sua moderna versão, junto à recém adquirida postura de competência, determinação e qualificação profissional, descobrirão possuir uma força imbatível. Por outro lado, se cada uma compreender melhor a si mesma, quem sabe poderemos perceber as limitações que nos impossibilitam vôos maiores?
Estamos neste ponto, fazendo o nosso balanço, contabilizando os ganhos, enumerando as perdas. Pegamos a direção do nosso barco e essa é a grande vitória. Como prêmio, conquistamos a auto-estima e descobrimos que compete a cada uma lutar pelo seu lugar, de preferência sem abdicar dos predicados que fazem de cada mulher um ser especial. Nessa hora de reflexão, observamos que os homens não cerram fileiras contra nós. Pelo contrário, parecem apreciar e buscar a nossa participação. De modo ainda vago e impreciso, começamos a entender que talvez não sejam eles os vilões dessa história. Quando muitas mulheres conquistam espaço, graças ao seu arrojo e competência, talvez nossos entraves tenham origem ainda nas lições do passado. As correntes que nos aprisionam são os nossos próprios limites.
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