3 de mai. de 2005

As cores da vida

Referindo-se aos artigos publicados, alguém diz, no encontro ocasional, que devo ter tido uma infância muito feliz. Ela me olha um instante, em silêncio _ como querendo perscrutar os meus pensamentos mais profundos _ e completa, devagar:

_ Uma vida feliz._ Enquanto fala, seus olhos se iluminam, em súbita percepção. Respondo o que penso que ela já entendeu:
_ A vida tem as cores que nós lhe emprestamos.

Haverá infância, adolescência ou vida sempre feliz? A nossa existência é uma colcha de retalhos, costurada por nós do jeito possível, nem sempre o desejado. Um estado de felicidade perene, além de irreal, seria monótono. Logo estaríamos inventando problemas para nos distrairmos. O cansaço é que nos faz apreciar o repouso, os dias sombrios nos proporcionam a alegria de abrir a janela e sorrir para o sol. O encanto reside nos contrastes, na busca da mudança, na luta para alcançar algo que parece difícil de conseguir.

Algumas pessoas são mais otimistas e outras fazem do pessimismo sua maneira de ser, mas não restam dúvidas: a vida tem a cor que lhe emprestamos. Costumo brincar que tenho tendência à felicidade. Mas sei que ela não cai do céu, ao mero pensamento positivo. Eu a procuro, questiono onde se escondeu, levanto o pano que a cobre, não sossego antes de encontrá-la. Considero anormal e passageira a desventura.

Há muito tempo, ainda nos bancos escolares, lembro que a professora de Filosofia inquiriu todas as alunas sobre o estado de felicidade e terminou pedindo que erguesse a mão quem se julgasse feliz. Para minha enorme surpresa, fui a única a erguer a mão. Lembro que me senti estranha, como o Joãozinho do passo errado no pelotão. Pareceu-me, na ocasião, que até a mestra me olhou de modo desconfiado. Decerto uma adolescente devia ser infeliz e insatisfeita.

Pressinto, às vezes, que alguns desavisados pensam que a pessoas como eu tudo vem às mãos com facilidade. Deve ser essa expressão risonha que tenho nas fotos. Mas, estar de bem com a vida não significa que ela sempre nos trate com a merecida consideração. Conforme ela nos bate, aprendemos a nos defender.

Também não são obrigatoriamente alienados todos os que tentam ver as coisas pelo seu lado melhor. Talvez, como eu, tenham seus próprios mecanismos de defesa ou suas rotas de fuga, para não se deixarem afundar em ondas de desânimo já no café da manhã, ao ler as primeiras manchetes nos jornais.

É provável que o conceito de felicidade seja diferente: o que aborrece a alguns, causa riso a outros; a mesma dificuldade que um considera obstáculo, o outro vê como estimulante desafio; alguns se queixam de mil doenças, outros levam conforto aos enfermos nos hospitais. Muitos vivem diferentes dramas, poucos sabem transformar o limão numa boa limonada. Entre esses, alguns não se furtam a provar frutas amargas, na busca daquela com o sabor ideal. Ao encontrá-la, sorriem, e os outros mais uma vez são levados a crer que para eles a vida é sempre cor-de-rosa.

Sei que fui uma criança amada. Odiada, também, lembro agora. Escrever tem isso de gostoso: conforme vamos cutucando as lembranças, outras afloram. Assim faço a minha terapia particular, eu e o computador, aqui sozinhos, ele mudo, deixando-me chegar às minhas próprias conclusões.

Pois, na primeira série, na ingenuidade dos meus sete anos, despertei o ódio mortal de uma colega, menina da mesma idade. Nunca descobri o motivo, naquele tempo eu não esmerilhava as situações como faço agora, questionando as razões ocultas. Todo dia, na saída do colégio, ela me perseguia, tentando puxar os meus cabelos. Eu passava o período das aulas em sobressalto e saía voando, quando a campainha tocava; corria duas quadras até chegar em casa, esbaforida. Após alguns dias nesse sufoco e correria, contei para o meu irmão mais velho o problema; ele prometeu que me esperaria no portão da casa em frente, bastava atravessar a rua e eu o encontraria.

No dia seguinte, novamente a menina me fez ameaças, que eu não questionei, ainda incapaz de lidar com o ódio. Contudo, quando bateu o sino, saí com toda a calma. Vendo na esquina o meu irmão, caminhei sem pressa, para espanto dela, que foi ficando para trás e desistiu de me perseguir. Passei por ele tranqüila, sem demonstrar que arrumara um guardião.

Hoje eu sei que isso se chama “sofrimento social”, são as etapas que precisamos superar para crescer e aprender a arte do convívio. A forma como cada um consegue enfrentar as suas dificuldades determina a pessoa que será. Ou, pelo contrário, cada um resolve os seus problemas de acordo com a sua personalidade? Não sei, as respostas não estão embrulhadas em papel celofane, oferecendo-se, como aquela tentadora e solitária trufa que alguém deixou sobre a minha escrivaninha.

Mas a lembrança adormecida retornou, e penso na outra menina. Por que eu a incomodava? Qual palavra, gesto ou maneira de ser que tanto a perturbou? E eu, se era do seu mesmo tamanho e altura, porque me acovardei? Teria o meu limite sido a educação recebida, que não me acostumara a brigar na rua? Essas perguntas ficarão sem resposta; voltarão para a caixinha imaginária onde guardo todas as recordações. Parece-me vê-las sendo novamente embrulhadas e amarradas com uma fita estreita de desbotado azul. Ali permanecerão, silenciosas, à espera de que uma frase qualquer as desperte.

Enquanto isso, continuarei na busca de diferentes e alegres matizes para pintar a tela que me cabe: a minha própria vida.

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