Caminha ao meu lado, qual sombra que desejo ignorar, essa intrusa que teima em mostrar a sua presença. Ela me acompanha desde o nascimento, compreendo agora; demorei a percebê-la. Cônscia do seu poder, deixou-me brincar de ser imortal, abusar da saúde, arriscar-me por ruas escusas, fazer ouvidos desatentos a conselhos sensatos.
Muito lentamente, ela se insinuou, causando uma perda aqui, outra ali; aproveitou momentos de distração para roubar bens preciosos. Assim age a Morte, taciturna companhia que caminha ao nosso lado e a quem não damos assunto, na pretensão de que, ignorando-a, se esqueça de nós. Como justificou alguém que não ia ao cemitério,nem freqüentava velórios: “Quem não é visto,não é lembrado”.
Alguns questionam o sentido da vida; questiono a morte. Observo a sua face com espanto e falta de entendimento, quando estende o manto escuro e para sempre cobre aqueles que amo.
Parece-me, então, que ela e a vida, na aparência inimigas e adversárias, na realidade são parceiras nesse jogo em que somos perdedores. Promessas de alegres dias, sonhos promissores, programações de viagens para “quando for possível”,expectativas inúmeras, desaparecem sob a tampa do caixão fúnebre que se fecha, ante o nosso olhar atônito. Enterramos junto uma parte de nós mesmos, cada vez que ela desce, no momento final.
A dor existe para nos ensinar a humildade; a doença iguala as pessoas, coloca a todos no mesmo barco. Quer situação mais ridícula que a dos pacientes nos hospitais, obrigados a vestir aquelas batas degradantes, expondo seus corpos, transportados pelos corredores nas macas estreitas? Num instante, desfaz-se todo o charme, o humano se apresenta sem a menor poesia, a realidade mostra a face nua. Alguns não conseguem suportá-la e se afastam, ligeiros, lançando explicações sobre a sua exagerada sensibilidade.Por serem muito humanos, argumentam, não conseguem suportar a dor alheia.
Temos muito a aprender sobre lidar com a morte. Ainda que certa, nunca nos encontra prontos.Quando se aproxima, fingimos não sentir seu bafo, ignorando-a, com fria determinação.
É pena, pois a morte é coisa pra ser enfrentada de frente.Alguns conseguem, e mesmo com esses não suportamos falar sobre a inimiga que os ronda, desejando leva-los do nosso convívio. Outros se fecham, fingindo que a sua proximidade não lhes rouba as forças; com esses, nos parece mais fácil entrar no jogo de fingir que está tudo bem.
Certa vez, uma mulher, em fase terminal, expressou o desejo de que alguém a ajudasse a morrer, apenas conversando com ela sobre o assunto e a ajudando a enfrentar esse momento decisivo.Entre tanto carinho recebido dos filhos e dos amigos, ninguém conseguiu "abrir o jogo"e deixa-la falar sobre o seu medo e a revolta, caso houvesse.Por excesso de amor, ninguém conseguiu.
Mas talvez precisemos revisar os nossos conceitos de amor e amizade, descobrir o quanto estamos protegendo apenas a nós mesmos.Para ajudar ao outro em seu momento extremo, precisaremos aceitar a morte como um fato da vida.
Parece-me que, quando ela chegar, se vier assim de mansinho, como visita que se insinua, primeiro direi que chegou antes da hora, aguarde um pouco, enquanto me preparo para recebê-la. Ninguém se espante, se começar a arrumar gavetas, dar telefonemas, rabiscar conselhos de como alguém deve realizar isso ou aquilo, informações de quem procurar, em cada tipo de dificuldades.Talvez tente organizar a morte melhor do que consegui fazer com a vida.Depois, compreenderei a inutilidade de tudo e, se tiver juízo, procurarei apenas viver, enquanto permitido for.
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