Brincam o cão e o gato, dividindo entre si a surrada bola de tênis, ignorantes da inimizade que separa as duas espécies. Distraem-se na companhia um do outro, por terem sido apresentados em tenra idade e outra companhia não possuírem. Ou não apreciarem, pois a galinha Maricota não encontra abrigo junto a eles: perseguem-na em desabalada corrida, fazendo-a abrir as asas e voar para os primeiros galhos do abacateiro, onde estará protegida. Correm os dois amigos pelo grande pátio, desviando-se da pitangueira, dos ciprestes e das azaléias floridas.
Em certas horas, obedecendo ao desejo ancestral, o gato se prepara para passear: olha o telhado, porta para a liberdade. Põe-se em guarda o cão, pressentindo o perigo: cessa a brincadeira, desdenha a bolinha a rolar à sua frente. Quando o gato arma o pulo, ele pula atrás e arranca os pelos do outro, na tentativa desesperada de retê-lo junto a si.
Foi-se a paz do pátio, para alegria da galinha, que desfila, garbosa, como a dizer: “Viu só o seu amigo? Se arrancou!” Nem a nota o cachorro, quando procura o canto mais sombrio e lá se esconde, acabrunhado, a cabeça entre as patas dianteiras, para curtir a dor de ser diferente. Pior: a dor de não ser. Pois o cão se acredita gato, conforme se nota, pelo seu comportamento peculiar.
Semelhante dor invade milhões de seres por esse mundo afora. Há sentimentos e desejos femininos, escondidos em corpos másculos, por erro da natureza; há determinação e maneirismos masculinos, a desdenharem do invólucro delicado com que a mesma natureza os traiu. Há pessoas prisioneiras de suas próprias limitações e preconceitos, paralisadas pelo medo de quebrar todos os tabus e se permitir viver. Observam a vida passar através das vidraças embaçadas, olhar comprido e desesperançado para o gato que circula no telhado.
São milhões que bem gostariam de, num impulso, pular como o gato e fugir de si e de suas vidas sem perspectivas; deslizar com graça e andar felino sobre escorregadios parapeitos, se permitindo aventuras e desafios. Talvez os mesmos que vivem a agourar, esperando que ele escorregue da marquise molhada e se espatife na calçada, provando o perigo de ousar.
Não come o cão a comida que lhe oferecem, procura pulgas imaginárias em meio ao pêlo bem cuidado; tenta atrair atenção para a sua desgraça, como forma de punição aos que lhe são chegados. Morre o riso na boca da dona, ao vê-lo com aspecto doentio; retarda o casal a saída para o cinema, preocupado com o seu caminhar alquebrado. Como os milhões que se retiram para o canto mais recluso e lá permanecem, desejando causar dó com a sua triste sina.
Nisso, retorna o gato, cansado, e num pulo se acerca, maneiro, pedindo perdão. Ignora o pretenso pouco-caso, enrosca-se, caminha sobre o corpo inerte do outro, deita sobre ele, senhor da situação. O cão se espreguiça, reconciliado com a vida, recebe as migalhas de amor que lhe são ofertadas.
Mas o telhado é apelo constante, promessa de liberdade, caminho para a aventura a que a natureza do gato não consegue resistir. Por isso a cena se repetirá vezes sem conta, para desespero de quem não consegue ser dono de si.
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