Foi caso de amor à primeira vista: Maria olhou o sótão e se apaixonou. A casa era grande e o sótão _ ah, o sótão! _ tinha forro de madeira,com barrotes e caibros escuros, sob as telhas vermelhas. Maria imaginou uma salinha naquele local. Visualizou a poltrona dele, os pés sobre o banquinho forrado de couro, o sol entrando pela janela envidraçada. Viu-se a si mesma, sentada na cadeira de balanço, bordando o tapete em lãs de cores quentes. Ouviu o barulho quase imperceptível das folhas do livro sendo viradas, enquanto ele a olhava, com ar interrogativo, esperando a conclusão de uma história qualquer. Lá embaixo, a agitação cotidiana; aqui, a paz.
Maria se encarregou de decorar todas as peças da nova morada, aproveitando o mobiliário antigo, herdado das avós. Como quem deixa o doce melhor para comer no final, assim ela deixou a decoração do sótão.
A tia telefonou, perguntando se, na casa tão grande, haveria lugar para camas e guarda-roupas dos quais não desejava se desfazer, agora que mudara para um apartamento. Maria não teve coragem de negar, aceitou ficar como depositária dos móveis; onde os colocou? No sótão, claro. “Solução provisória”, disse a si mesma.
Logo chegaram os sobrinhos de muda do Rio de Janeiro e também pedirem para que guardasse estantes, livros e alguns objetos. Como no sótão já estavam os móveis da tia, para lá também foram as coisas do sobrinho.
Com o tempo, vieram bicicletas de três rodinhas, que algum dia alguém poderia querer,a esteira substituída por outra mais potente, patins em desuso, álbuns de discos antigos, um gramofone que só faltava a manivela e várias decorações de festas infantis. O sótão ficou atulhado e nunca mais se pensou na salinha íntima.
Um dia, a casa grande perdeu a razão de ser e Maria se mudou para um apartamento. Por último, sobrou o sótão. Começou a telefonar para os donos dos guardados e, a cada telefonema, sentia que acrescentava um problema aos tantos de cada um. Levou um mês para conseguir se ver livre das tralhas.
A tia autorizou a doação dos móveis a uma entidade que cuidava de velhinhos; bicicletas, patins e esteira foram para a Feira da Fraternidade, junto com as outras coisas, algumas já em frangalhos.Nenhum dos proprietários desejou reaver os seus pertences.
Maria olha o sótão, pela última vez, antes de fechar a porta e abandonar a casa. Com a pintura nova e o forro restaurado, lembra o lugar onde desejou fazer o seu recanto especial. Ocorre-lhe uma palavra: “Prescreveu”. Foi o sobrinho quem a aplicou, com a praticidade dos jovens, quando alguém usou a mágoa por fatos ocorridos vinte anos atrás para justificar a atitude rancorosa do presente. A pessoa queixosa ficou olhando para ele com a mesma expressão de espanto com que agora ela olha para o sótão vazio.
Prescreveram os patins velhos, a esteira obsoleta, os sonhos adiados, tudo o que poderia ter sido e não foi. Prescreveu a salinha e os momentos de aconchego que poderia ter proporcionado. Um dia, Maria sabe, a gente descobre a inutilidade do que guardou com tanto apego. Mas, como é inteligente, Maria aprendeu a lição: por isso ela abre a porta do apartamento novo e se dispõe a recomeçar. E aqui só há espaço para o que vale a pena.
Um comentário:
Marta!
Um texto seu, é "seu" mesmo. Ou seja, há muito você conquistou os dotes de uma exímia prosadora, com criatividade temática e perfeita narrativa, prendendo o leitor até o final. Você é uma autora madura, minha querida Amiga de Letras e isso, faz tempo.
Nem imagina o quanto fico pesaroso em ver triunfar tanta vulgaridade pseudo-literária em nosso país e os verdadeiros artesãos das palavras, não têm um povo habituado a consumir leitura para nele, identifica seu público.
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