Suas crônicas mostram intimidade com a terra e a vida no campo, na simplicidade com que trata temas espinhosos como relações humanas, amor, ciúme, inveja, dor e morte.
15 de abr. de 2007
O sobrado da esquina
O convite para comparecer à residência dos Abrantes, às oito horas da manhã de Páscoa, causou surpresa e muitas especulações, principalmente por atribuir aos destinatários - os pequenos e habituais freqüentadores da casa - uma importância a que não estavam acostumados.
O sobrado dos Abrantes ficava na esquina da rua Santa Cruz com a Sete de Setembro, circundado por um canteiro de hortênsias em vários tons de rosa e azul. O acesso ao jardim era feito através de um portão de ferro, colocado de forma diagonal sobre a calçada, no ponto onde as duas ruas se encontravam. Ao contrário do comum das construções, o sobrado ficava abaixo do nível da calçada. Por isso, após ultrapassar o portão, era preciso descer os quatro degraus da escada para chegar ao jardim e logo à porta de entrada.
Os donos da casa eram um casal de velhos, ou assim pareciam aos meus oito anos. Eram os avós das minhas amigas, duas meninas, criadas como filhas, por terem perdido a mãe muito cedo.
A avó, tratada com o merecido respeito, era a Dona Paulita, uma senhora calma, discreta, de estatura baixa e um pouco acima do peso desejado, como era costume às mulheres da época. O marido da dona Paulita, não sei por que motivo, era chamado apenas de Joãozinho, com a maior familiaridade, coisa em desacordo com os padrões cerimoniosos então vigentes. Mesmo nós, as crianças, o tratávamos por tu, sem que no tratamento houvesse o menor desrespeito, apenas porque todos assim o tratavam, decerto por ser sua vontade.
Ele era um homem miudinho, de poucas falas, um sorriso bondoso e paciente, incapaz de alterar a voz.
Em perfeita ordem e com certo grau de independência, possibilitada pela amplidão do espaço físico, no sobrado viviam diversas ramificações da família, distribuídas pelos diferentes setores da casa, como se ela fosse um grande coração, sempre pronto a acolher os carentes de achego. Todas as peças, mobiliadas com móveis antigos, herança portuguesa, tinham o pé direito muito alto, o que aumentava a sensação de amplitude. Inclusive, num tempo em que suítes ainda não eram comuns, lembro que havia várias, com os banheiros conjugados aos quartos de dormir, que se abriam para as espaçosas salas de estar. Dessa forma, embora vivendo juntos, cada núcleo familiar conservava a sua liberdade.
Assim, tinham aposentos independentes um cunhado solteirão, a filha solteira, o filho casado, com a mulher e o filho pequeno, além das netas e de três sobrinhas, essas com a finalidade de cursar a escola. Também seus pais tinham os cômodos reservados, pois costumavam passar alguns dias na cidade, quando tiravam folga do trabalho na granja.
Da mesma forma, parecia-me que outro cunhado e um segundo filho, esporadicamente, costumavam ali pernoitar, mas disso não estou certa. Apesar de ser assídua freqüentadora da residência, não cheguei a conhecer todos os aposentos, por serem muito respeitados os limites de cada um.
Com tal estrutura a gerenciar, era extraordinário que ainda se lembrassem de proporcionar uma surpresa aos amigos das netas, quando as nossas brincadeiras costumeiras já deviam contribuir para a alteração da rotina familiar.
Curiosos, na manhã da Páscoa lá estávamos eu e cerca de outras dez meninas e uns poucos meninos.
A filha solteira, que comandava a casa e bem merecia o apelido de Santa, foi quem explicou que o convite era para uma brincadeira: a caça ao ninho. Logo saímos a correr pelo jardim, ansiosos, encontrando algumas cestinhas de vime no meio das hortênsias, outras presas aos galhos das árvores ou no meio das costelas de Adão. As cestinhas eram todas iguais, para evitar a discórdia e o ciúme.
Quando todos tinham seus tesouros nas mãos, fomos convidados para tomar um caprichado café da manhã, junto com os donos da casa, todos sentados à volta da comprida mesa da sala de jantar, coberta com uma toalha adamascada branca.
Levei dias só namorando o ninho, com receio de que a sua destruição significasse o fim da magia. Quando deixei de resistir e apertei entre os dentes o primeiro ovinho, o chocolate se desmanchou na boca, derreteu-se em ternura, apaziguou com a sua doçura todos os meus medos.
O tempo passou, muitas coisas aconteceram: o velho sobrado cedeu lugar a um edifício; quando cresci, soube que afinal o modesto Joãozinho era uma pessoa importante (por isso não precisava aparentar importância); alguns personagens dessa história tomaram rumos desconhecidos, outros não existem mais. Mas, nas manhãs de Páscoa, as lembranças retornam, trazendo de volta cada uma das pessoas que habitavam o sobrado da esquina, cercado das hortênsias multicoloridas, com as paredes entranhadas de paciência e solidariedade.
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Um comentário:
Marta!
Que felicidade termos coisas lindas para lembrar e amar.
Os acontecimentos pequenos, nos marcam muito, e grandes se tornam.
Comecei a pensar nos meus...
Mil beijos da Ruthe
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