Imagine a seguinte situação: alguém se convida para passar cinco meses em sua casa, como hóspede, e a retribuição é sair contando tudo o que ouviu e presenciou. Como você se sentiria? Foi o que ocorreu, na vida real, com a personagem central de “O livreiro de Cabul”, o livro de Asne Seierstad que se tornou best-seller mundial.
Quando a jornalista norueguesa conheceu o livreiro e sua família, viu ali a oportunidade de escrever sobre a realidade das mulheres numa sociedade islâmica fundamentalista. Com esse propósito, pediu para ser aceita no convívio familiar, dividindo o apertado espaço da casa. A família era constituída por cerca de vinte pessoas, entre mãe, duas esposas, filhos, irmãs, sobrinhos, comprimidos em quatro cômodos e todos mantidos pelo patriarca do clã, o livreiro. Pelas dificuldades do pós-guerra, não dispunham de colchões, cobertas ou utensílios de cozinha.
Através das confidências que lhe foram feitas, a jornalista teceu a trama da história, enquanto contava o dia-a-dia no Afeganistão de 2002, após a derrubada do regime talibã pelo exército americano. Desvirtuando o sentido inicial do seu estudo, contou intimidades de todos os membros da família, transformando o livreiro no único responsável pelas dificuldades de cada um.
O livro é interessante, embora choque o fato de uma hóspede, recebida com grande consideração, desnudar a alma das pessoas com quem conviveu, na maior confiança _ ainda que se tratasse de uma jornalista, pretendendo fazer um documentário.
É perigoso formar juízos, sem estar na pele do outro. Há enormes diferenças entre a cultura islâmica e a ocidental. Pretender julgar uma realidade com os critérios de outra é no mínimo irresponsável. Para entender o modo de vida afegão, precisaríamos ter nascido lá, num país com conflitos sociais e religiosos, onde três quartos da população não sabem ler, nem escrever; onde apenas seis por cento das pessoas usufruem de luz elétrica. Precisaríamos ter acostumado com a visão de tanques inimigos atravessando o jardim, ter escapado à chuva de granadas explodindo as paredes do apartamento. Precisaríamos ser os sobreviventes de uma guerra que se estendeu por dez anos e exterminou um milhão e quinhentos mil afegãos; depois, viver numa Cabul pobre e destruída, para onde voltava um milhão de habitantes, antes refugiados no Paquistão e nas províncias.
Atingido em sua dignidade, o homem retratado pela jornalista deu a sua resposta, através do livro “Eu sou o livreiro de Cabul” _ onde o autor se diz perplexo com o panorama distorcido apresentado pela estrangeira, oriunda de um país rico e culto, muito diferente do seu. Uma mulher que se julgou civilizada e superior, mas foi incapaz de corresponder à generosa hospitalidade que lhe foi oferecida. Obcecada pelo furo jornalístico, não hesitou em colocar em risco a segurança da família que a recebeu com desprendimento, relatando detalhes íntimos de cada um.
Conhecedora dos rígidos princípios morais que dominam a cultura islâmica, principalmente em relação às mulheres, é estranho que a jornalista não tenha avaliado o mal que poderia causar a divulgação do seu livro.
“Seja bem-vinda”, falou o livreiro. E ela não compreendeu o que isso significava.
2 comentários:
Marta!
Esta é a verdadeira "invasão de privacidade" que já vi. Muitas pessoas parecem não entender que o seu mundo particular não pode ser invadido desta maneira.E é tão simples, basta a gente se colocar no lugar da pessoa ou pessoas que estamos desnudando contra sua vontade.
Beijos
Marta!
É... pode considerar de um tudo nisso... desde a falta de respeito cultural, de ética profissional e de valores morais. O jornalismo é uma linha tênue entre a maravilha e a barbárie.
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