“A vida é um cobertor curto”- concluiu a jovem empresária, com naturalidade, após relatar os sucessivos problemas enfrentados nos últimos meses, alternados com ocasiões de sucesso e euforia. Não precisou explicar: a imagem foi tão nítida, que cheguei a sentir o desconforto da coberta escassa.
Nas noites frias, não há nada mais desconfortável que um cobertor curto: se a gente puxa pra cima e consegue aconchegar o pescoço, os pés ficam de fora; sentindo frio, os próprios pés se encarregam de puxar o cobertor pra baixo, para nele se enrodilharem. Um minuto de distração e já as mãos puxam o cobertor novamente pra cima, a fim de agradar ao pescoço. Após uma noite dessas, levantamos irritados, furiosos conosco, pela preguiça de não ter levantado pra pegar outra coberta.
Pra muita gente, a vida não dá descanso - só afrouxa de um lado, quando aperta do outro. Por isso, no primeiro momento, concordei com a observação. A vida é mesmo um cobertor curto _ pensei. Quando tudo parece perfeito, azeitado, “agora vai funcionar”, nessa hora uma peça emperra, tenta-se consertar, outra quebra e aí tudo passa a dar errado. Como quando, em casa, a máquina de lavar roupa começa a sacudir e isso é só o sinal para o freezer também apresentar um barulho estranho, a geladeira começar a degelar e a máquina de secar soltar a correia, naquela mania que os eletrodomésticos têm de se mancomunarem para nos aborrecer (e estourarem o orçamento doméstico). Não há garantia de felicidade perene, amor eterno, saúde de ferro, garantia de nada; tudo é incerto e ocasional.
Mas, nesse mundo repleto de incertezas, temos inúmeros momentos felizes, alguns tão perfeitos e completos, que por eles sentimos que a vida já valeu a pena. Momentos em que, em estado de êxtase, pensamos: Se morresse agora, morreria feliz.
Ao contrário do cobertor curto, incapaz de proporcionar uma sensação de total felicidade e bem-estar, a vida nos presenteia com momentos plenos, ainda que fugazes. Às vezes, num acesso de generosidade, presenteia com temporadas de boas novas, pacotes de alegria e despreocupação, fitas coloridas de amor e amizade, amarradas por funcionários eficientes, amigos fiéis, amores duradouros.
Mas, antes que alguém possa cair na tentação de acreditar que fez por merecer tudo isso, a vida – sempre brincalhona – dá uma rasteira e faz o sujeito cair. Só pra não se achar melhor que ninguém.
Contudo, a bem-aventurança prolongada é mãe da preguiça, da pretensão, da depressão. Quando nos faltam problemas, tratamos de inventá-los. Por isso, sábia, a vida alterna alegrias e tristezas, preocupações e tranqüilidade. Nos momentos felizes, adquirimos forças para enfrentar as agruras. Nos dias amargos, abastecemo-nos das lembranças agradáveis. Revigorados, suportamos melhor os revezes. As dificuldades e os empecilhos despertam a garra e a vontade de mostrar do que somos capazes. Desse patchwork é feita a vida. Que, afinal, talvez não seja um cobertor curto, mas bem poderia ser comparada a uma colcha de retalhos.
3 comentários:
Querida Amiga!
Assim é a Vida - a descreveste por completo, sem esquecer os mínimos detalhes. E, no final, nós os privilegiados, ainda devemos agradecer por termos altos e baixos, pois a maioria das pessoas não tem nada.
Beijos
Marta
Seu texto "Cobertor curto" não me deixou a refletir mas sim a constatar o que percebo intimamente eo que realmente acontece em nossso dia a dia.Ainda bem que nesse patchwork da vida ou nesse puzzle dos relacinamentos,vivenciamos momentos maravilhosos,verdadeiros presentes de Deus.Assim seguimos sob´dias de céu azul ou noites enluaradas, quando introduzimos na alma a palavra "bonança".
Parabéns tocou corações.
Sua leitora...
Marta, por acaso achei o teu blogger e pude me deliciar com esta crônica tão bem escrita. Parabéns por costurar com pontos de carinho esta colcha de retalhos.
Um abraço, Marlozi (estudante de Letras da UFSM)
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