“A Kika veio te visitar”, falei para a menina, e ela me olhou, com ar de quem não assimilou a informação. “A Kika?” _ perguntaram seus olhinhos espertos. A menina tem um ano e oito meses e vocabulário ainda escasso, o pensamento bem mais rápido que a capacidade de se fazer entender. De vez em quando, aflita com a ignorância dessa gente, desata a falar sem parar e, em tal verborragia, parece estar comunicando coisas importantes; pena que não se entenda uma palavra.
Mas a porta da casa se abriu e a cadela rotweiller se esgueirou, no seu andar sinuoso. Essa tem um ano, mais ou menos, e deve a maneira de andar a um acidente de que foi vítima, ainda novinha, quando foi atacada por um cão adulto, ciumento da atenção que a caçula despertava. Seus antigos donos concluíram que seria difícil a convivência canina, após esse episódio, e precisaram se desfazer dela, que terminou em nossas mãos, com um mês de idade.
A princípio, houve o receio de que a deficiência prejudicasse a função de guarda, mas ela sabe compensar o problema com maestria, além da sabedoria de, ao mesmo tempo em que se mostra guarda zelosa, ser de extrema docilidade e carinho com todos da casa.
Pois a cadela entrou e a menina estacou, como se a surpresa fosse demais para ela. “Kika!” _ exclamou, os olhinhos brilhando, na felicidade inesperada. Desde muito pequenas iniciaram essa amizade, registrada em filme no celular do avô, tal a beleza da cena, menina e filhote se aproximando, se testando, se conhecendo. A cadela com mil cuidados, rastejando, centímetro a centímetro, com breves pausas para sentir a aceitação do ambiente. Abanava o rabinho, para mostrar boa vontade, enquanto olhava para uns e outros, como se dissesse “posso mesmo”? Até que a menina estendeu a mão, fez um carinho no pelo macio e mais a cadela se estendeu no piso, mostrando-se submissa. Mas, afoita, a menina se adiantou e experimentou montar na cadela. Aí foi demais para a rotweiller, que fugiu e permaneceu perseguida pelos passos trôpegos da menina, através da sala.
Assim cresceu e se firmou essa amizade, onde os limites, até agora, foram impostos pela cadela: montar, não!
Mas hoje, na alegria do reencontro, menina e cadela brincam como duas crianças. Na cesta dos brinquedos, a avó colocou uma cartela de papelão, sobra de alguma embalagem. A avó testou o papelão sobre a mesa e viu que daria uma boa casinha, para uma menina criativa; largou a cartela na cesta, como quem não quer nada, junto com outras embalagens descartadas, para as quais a menina costuma achar mil utilidades.
A menina achou a cartela e circula pela sala, sacudindo-a, com as duas mãos. O movimento desperta a atenção da rotweiller, que trata de roubá-la das mãos da menina. Começa um jogo de puxa pra cá e pra lá, em que a cachorra sai vencedora. A menina faz uma boca quadrada e abre o berreiro. “Deixa brincar, ela também é nenê”, fala a mãe, divertida com a situação. A menina ri e retira a mão, mas logo lembra que o brinquedo é seu e puxa-o novamente.
Entre risos e choros, as duas disputam a preferência do momento, até que a menina ganha a parada e a cadela vira a atenção, instantaneamente, para a bola, esquecida sobre o tapete. Percebida a atitude, agora a menina quer recuperar a bola e começa nova disputa. Lá pelas tantas, antes que a bola seja furada, alguém trata de escondê-la. A menina continua envolvida com o papelão, mas a cadela, na falta de outro brinquedo, já avança para o bebê de borracha, vestido com o calção de tecido xadrez. “Não!” _ gritam os adultos, em uníssono, antes que o crime se consuma.
Menina e cadela, juntas, aprendem a arte de conviver, repartir e estabelecer limites.
A Kika mudou de moradia e ficou lá com a menina. Muitas aprendizagens aguardam as duas. Que, se tiverem sorte, crescerão juntas e felizes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário